A vontade humana e o brincar
- Ecoar da Terra
- 10 de nov. de 2022
- 5 min de leitura
Como entender o nosso papel de guardiões da vontade das crianças e aprender a cuidar da autonomia, fortalecer a saúde e a capacidade motora na infância?

Quando se fala em vontade, qual é a primeira coisa que lhe vem em mente? Pare um instante. Perceba o que lhe chega de imediato. O que é esse querer ao qual a criança se refere quando diz: “eu quero”? E quando você diz: "eu quero", é diferente?
Um delicioso sorvete? Um encontro com amigos de longa data? Uma viagem para uma praia na Indonésia? A conquista de um diploma? Esses certamente são diferentes âmbitos da vontade e nos falam de uma vontade mais própria e íntima do nosso ser.
Mas a vontade é algo mais forte e grandioso. Trata-se da força de vida que nos traz à Terra para buscar nosso caminho e realizar nossa missão, forjando assim, a nós mesmos. É ela que nos impulsiona para frente, apesar dos inúmeros dragões, monstros, gigantes e outras terríveis criaturas que teremos que enfrentar, ajudando-nos a superar obstáculos e a nos desenvolver nessa trajetória.
Se estamos falando de uma força de vida, falamos de algo intrínseco ao ser humano? Podemos dizer que uma pedra tem vontade? Ou, que um animal é destituído de vontade por que ele vive no campo do instinto? E as plantas? Será que nelas vive a vontade? Se é um ser vivo, certamente atuam nelas forças criadoras da vida. Então, o que será que as diferencia da vontade humana?
É difícil reconhecer a vontade numa rocha, incapaz de movimentar-se, a não ser que algo ou alguém lhe induz. Por isso, costumamos dizer que é inanimada. Já a planta não. Ela se mexe, se transforma, traz cores, sabores e aromas para o mundo. Será essa uma forma da vontade? Sim, pois ela nos traz mais perto da vivacidade. E o que dizer do animal? O que sua presença traz? Além de movimentos e sons, é possível reconhecer gestos e hábitos, peculiaridades em geral associadas a um grupo ou família específica de bichos. Com os animais domésticos criamos tanta afinidade que conseguimos até falar de personalidade e desejos.
Se olharmos a origem da palavra "animal" encontramos a derivação do latim animalis que designa o sopro ou fôlego de vida, a respiração, aquilo que nos dá a possibilidade da vida, que nos anima. Não é à toa que alma é a palavra que usamos para definir este recôndito do nosso ser que é mais intenso, balouçante, que parece estar dentro e fora ao mesmo tempo, que alcança céu e terra e os entrelaça numa mistura profunda e ao mesmo tempo fugaz. O homem, ao contrário do animal, possui uma individualidade bem demarcada e, que inclusive está trabalhando o tempo inteiro para se reconhecer e se afirmar, para experimentar as suas diversas nuances e compreender seus desafios.
Queremos nos sentir pertencentes ao nosso grupo humano, mas precisamos, em paralelo, nos sentir nós mesmos. Essa necessidade traz mais complexidade à esfera da vontade. Por isso, a vontade humana é tão bonita e difícil de determinar. Ela engloba tudo o que os reinos dos animais e vegetais desenvolvem e foi além, pois está em busca de seu significado mais elevado, aquele que nos aproxima do divino. Mas tudo isso mora em nós. Como reconhecê-los? Como saber quem está atuando em nós?
Para se aproximar dessas respostas é preciso muita paciência e observação. Acompanhar as crianças em seu crescimento é uma grande oportunidade de nos ajudar a ver esta força desabrochando em nós.
Como esta força se manifesta quando nascemos? Basta olhar um bebê e seus movimentos. O que acontece? Como são os movimentos? Coordenados? Intencionais?
São exatamente o contrário. São involuntários e reflexivos. Vem do impulso natural do corpo e são extremamente ligados à sobrevivência dele. Mas são necessários para ajudar este corpinho a ir para o mundo, para entrar em contato com o que está ao seu redor, ajudá-lo a perceber a si mesmo e acordar para o que vive em seu entorno. Aos poucos, seu interesse se volta para as coisas externas. Com a conquista da habilidade corporal, seus movimentos podem ser guiados e revelam a sua vontade. É nessa hora
que conseguimos reconhecer mais quem é essa criança que chegou em nossas vidas e o que ela quer.
Nos primeiros três anos a vontade da criança como que se esparrama sobre o mundo, tamanho o desejo de integrar-se, conhecer este mundo e fazê-lo seu. Parece que ela vai em todas as direções e não consegue parar. E é verdade. Como parar se estamos aprendendo a dominar essa força incrível e profunda capaz de gerar movimento e criar coisas novas?
Nessa fase a vontade está adormecida. É o conhecimento impulsivo que brota da sabedoria ancestral do corpo, mas que vamos humanizando aos poucos. O que significa humanizar a vontade? Elevá-la do âmbito do instinto, dos impulsos, da gana aproximando-a da luz dos desígnios do nosso ser mais profundo, do nosso Eu verdadeiro. Um caminho que começa brincando! Se conseguirmos conservar a pureza e a leveza desse momento da infância, melhor ainda! Sorte que temos as crianças ao nosso lado para nos relembrar. Nesse sentido, a vida é um eterno rememorar.
É ao brincar que a criança aprende. Aliás, que todos nós aprendemos, pois um dia já fomos crianças. A primeira forma de lidar com a vontade é no corpo. A princípio o fazemos de modo físico cuidando da autonomia e fortalecimento da saúde e da capacidade motora. Então temos o brincar e os limites que lhe dão contorno, conforto e segurança. A criança está totalmente aberta e a sua vontade também. Por isso ela quer sempre, quer tudo que está à sua vista, ao seu alcance.
O adulto que já passou por todas essas conquistas é capaz de usar sua vontade para realização de projetos de vida e direcioná-lo com propósito e intenção. A criança não. Ela pula de uma vontade para outra como um macaco pulando de galho em galho. Ela não tem filtro, não sabe fazer distinção, afinal ela simplesmente quer e não tem discernimento para decidir o que é melhor para ela. Quem é o guardião da sua vontade? Os adultos responsáveis em seu entorno.
Ao cuidarmos da nossa vontade, ajudamos a criança a cuidar da sua. Nosso caminho é o seu guia. Por isso é tão essencial o caminho da autoeducação para o fortalecimento da vontade humana.
Não perdemos a vontade, talvez tenhamos perdido a conexão com esta força primordial ao nos esquecermos da nossa essência e ao mergulharmos na dinâmica frenética da vida atual. Fica mais um convite para o reencontro com a própria vontade.
Como fazer isso? Percebendo o que vive em nós e diferenciando o que é pueril, passageiro, superficial e desnecessário daquilo que é fundamental e relevante. Mas não basta perceber. Esta é a contribuição da nossa consciência. A luz que ilumina nossa ação. É na nossa ação, atitude e gesto que revela-se nossa vontade genuína, aquilo que fazemos de nós apesar das dificuldades, cansaço, preocupações, tentações, renúncias e sacrifícios de determinados prazeres e desejos.
Esse esforço essencial que cada um é capaz de fazer por si em seu caminho de crescimento e desenvolvimento pessoal interior - a velha conhecida autoeducação - aliada ao exemplo que damos com os afazeres que realizamos vai trabalhar sobre a vontade das crianças e a expressão do seu brincar. Se queremos um brincar mais rico, vivo e saudável, será necessário olharmos para nossa vontade e nossa atuação no mundo. A auto-ativação da nossa vontade está diretamente ligada à força interna mais profunda que impulsiona o brincar da criança, essa força mais genuína e própria do nosso ser.
Que a vontade de brincar das crianças nos instigue sempre a revisitar a nossa vontade mais íntima para que possamos nos reconhecer à nós mesmos em meio a tantas demandas da vida corriqueira da nossa sociedade consumista e, assim, sempre nos reencantarmos com esta força criadora divina em nós!




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